Capítulo 1 – Mundo novo, velhos pecados
“Ao se repetir um sonho – dizia meu sábio e velho pai – quer dizer que é coisa certa da parte de Deus, e Ele logo o fará cumprir.” Tais palavras sempre me angustiaram na infância, mais ainda que os terríveis pesadelos que me faziam acordar aterrorizado durante a noite. Cresci ouvindo que deveria evitar a floresta e todos que nela viviam, sejam as felinas feras ou selvagens nus e emplumados, pois – “Os tupinambás comem os desavisados”. Os perigos da mata mortal eram conhecidos por todos na vila onde eu morava, e apenas os mercenários experientes se atreviam a desobedecer a tais advertências e se aventurar nos verdejantes labirintos. Muitos partiam, mas poucos retornavam. Dentre aqueles que voltavam ao mundo civilizado, se tornavam pessoas totalmente diferentes, uma outra “coisa”. Me parecia que eles sempre haviam deixado para trás um pedaço de si: seja do corpo, da mente ou da alma. Sendo apenas um menino, eu estava continuamente assustado – já que a minha branca casa de barro era a derradeira nos limites da vila, erguida no alto de um barranco de terra vermelha, que tinha aos pés, apenas um fio d’água choroso. Pelas bordas tortuosas de madeira da janela de meu quarto, eu observava a grande onda verde que parecia querer engolir meu casebre com telhado de palha. A selva escondia monstros durante minhas noites insones. No escuro, meus ouvidos eram assediados por gritos e urros de animais ocultos pelas densas trevas. E quando eu finalmente conseguia pegar no sono, não tinha paz, pois meu espírito era açoitado por sonhos horríveis. Os pesadelos ficaram mais frequentes assim que nos mudamos para aquela casa, há mais ou menos um ano. Em tais sonhos macabros, eu era sempre perseguido por criaturas abomináveis. Com frequência era esmagado pelo abraço de gigantescas sucuris, dilacerado por onças pintadas ou devorado por jacarés com suas escamosas bocas compridas e cheias de dentes pontiagudos. Contudo, o pesadelo que mais se repetia era um em especial – nele tinha uma selvagem nua, pintada em sangue e usando uma coroa de penas. Ela me caçava, mastigava e engolia. Por fim, me cuspia como bagaço de cana, carne e ossos dilacerados. E aquela massa disforme, ainda sendo eu, sentia as dores e calores latejantes que me faziam despertar suando em bicas e com o coração ameaçando arrebentar o peito. Sempre que tinha tais pesadelos, eu era invadido por dois sentimentos avassaladores e conflitantes: o medo e o desejo pela sedutora selvagem. E eu, ainda sendo muito jovem, não sabia como lidar com tais sensações.
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Naquela noite em especial, eu despertei do inferno de meus pesadelos e fui levado diretamente ao paraíso dos olhos azuis de quem eu mais amava no mundo: minha irmã Ester. Seu doce olhar tinha o poder mágico de afastar qualquer maldição, como se fosse um amuleto de proteção sagrado. A chama tremulante da candeia de barro que ela trouxe consigo brilhava apaixonada na sua pele branca, levemente rosada, como manga madura. Ela tinha uma boca pequena e rubros lábios grossos, como se o caprichoso criador tivesse dado vida a uma boneca de porcelana. Seus cabelos negros cacheados dançavam, graciosamente, quando ela se movia sempre com delicadeza mimosa, era como se o mundo inteiro cantasse só para ela. Ainda muito nova, Ester se viu com o peso de um bebê nos braços, já que foi forçada pela tragédia a assumir o papel de nossa falecida mãe, que me disseram: morreu dando à luz. Eu, por fim, acabei roubando o lugar de suas bonecas, e ela, resignou-se precocemente ao seu destino maternal, com a coragem que só as mulheres têm, jamais deixando de ostentar um sorriso angelical nos lábios, por mais cansada que estivesse. Ester repousou a candeia sobre o baú velho, onde minhas vestes eram guardadas, espaço bravamente disputado com os pertences de meu pai, com quem, nas noites de sexta e sábado, eu dividia o quarto. No entanto, naquela noite em particular eu ficaria só e dormiria ouvindo o sibilar do vento, em harmonia com o murmúrio das águas do regato, profanado apenas pelos ruídos selváticos que da mata vinham me aterrorizar o sono. Quando eu despertava assustado, Ester sempre surgia para me confortar com seu abraço maternal e palavras doces. Tavares, o pescador, assim era conhecido meu viúvo pai, que se levantava antes do sol sair e trabalhava arduamente, se ausentando de casa por muitos dias. Ele fazia mais do que seus cansados braços permitiam, contudo, ainda dependíamos da caridade das marés, em nos trazer peixe para as redes. Todas as lembranças que tenho de meu pai, se iniciavam com Ester, acendendo a vela das almas, antes do brotar de três estrelas no céu de sexta-feira. Era como um ritual sagrado que conjurava minha figura paterna que, como por adivinhação de que a chama da vela estava segura, precipitava-se porta adentro. Tal qual feiticeiros agourentos, o velho cheio de desconfiança se encarregava de fechar todas as janelas de madeira da casa, após conferir se algum dos vizinhos estava espionando nosso peculiar comportamento. Nem mesmo o sol poderia ser testemunha do que fazíamos nas trevas do isolamento com o mundo exterior.
Até aquele momento, Ester e eu deveríamos já estar devidamente lavados e arrumados, trajando nossas melhores vestes, e por eu ser de sua inteira responsabilidade, minha irmã era sempre cobrada por isso. Jamais me esquecerei daquela manhã em especial. Ester usaria pela primeira vez o vestido que fez com esmero para si mesma. Como uma noiva supersticiosa, ela não permitiu que meu pai ou eu colocássemos nossos olhos nele, antes que estivesse devidamente finalizado.
Meu pai havia trabalhado duro e poupado por meses e, no processo, até perdera o dedo indicador da mão direita durante uma pescaria em alto mar. “Tavares teria dado até o braço por ela”, diziam todos na vila onde morávamos, pois sabiam que, para ele, não havia sacrifício duro o bastante que o fizesse negar qualquer coisa para minha irmã, já que era tão boa filha. Ester tinha mãos peculiarmente pequenas, extremamente delicadas, de uma firmeza e talento excepcionais. Já eu tinha duas mãos esquerdas, não sendo canhoto. Eu não tinha dom algum para qualquer coisa. Não tenho palavras para descrever o olhar de Ester quando colocou os olhos no delicado tecido azul-celeste pela primeira vez; dali em diante, ela passou semanas trabalhando sozinha em seu sonhado vestido e, após muitos furos e dedos esfolados, o resultado arrancou lágrimas de meu pai, que brilharam como pequenas estrelas em sua barba branca desgrenhada. O chapéu de feltro surrado repousou em seu peito, descobrindo a cabeleira rebelde e grisalha que lhe caía sobre os ombros. Ester era prodigiosa e prendada; tudo em que ela colocava as mãos ganhava um brilho especial, dotes de uma filha amada e devotada ao lar. Ela não folgava com coisa alguma fora de casa; não tínhamos luxo, porém, o pouco que tínhamos era cuidado com zelo mimoso e olhar atento de menina moça. Foi bem naquele tempo que as preocupações com um bom casamento para Ester começaram a ocupar meu pai, que já havia conversado com um primo nosso, morador distante, para desposá-la, com a finalidade de manter nosso sangue seguro. Não sei como seriam as coisas para mim após Ester nos deixar; então eu me mantinha focado nos rituais da casa, a fim de procrastinar o sofrimento de perda. Sempre que o Sol, cor de fogo no ferro, morria na sexta-feira, dando lugar à noite de sábado, meu pai com suas mãos enrugadas e calejadas retirava de pequenos buracos na parede de barro alguns rolos de pergaminhos antigos, cujas folhas eram frágeis e puídas, que, por serem já desgastadas pelo uso constante e pelo tempo, deveriam ser manipuladas com zelo religioso. “Alguém que não morasse em nossa casa ou não tivesse nosso sangue jamais deveria pôr os olhos naqueles pergaminhos”, advertia meu pai com um lampejo de horror nos olhos. “As palavras e cânticos que eu lhe ensino neste idioma sagrado e perdido, em hipótese alguma, podem ser repetidos em voz alta além destas paredes”!
Cercados pela escuridão de nossa caverna, escondidos como morcegos, nós cantávamos cânticos naquela língua estranha, que ouvíamos só naquele local e naquele dia, sob determinadas condições. O nosso melhor e único dia em família era iluminado por uma solitária e tímida luz tremulante da vela das almas. Nas manhãs de sábado, meu pai tinha o costume de me acordar antes do cantar do galo e se debruçava comigo sobre as sagradas letras miúdas, que magicamente pareciam saltar dos pergaminhos antigos durante a leitura. Nós líamos aqueles caracteres com ávido apetite, como se nossa vida dependesse deles. Lembro-me, com carinho, de repousar a cabeça no peito cansado do meu velho pai, coberto por uma vasta barba branca, que lhe conferia o ar de sábio, e de sua difícil respiração áspera. Enquanto minha irmã dormia até tarde, no único dia em que suas responsabilidades lhe permitiam tal luxo, eu era forçado a codificar e decodificar aquelas letras antigas dos pergaminhos místicos, habilidade que meu pai febrilmente se empenhava que eu dominasse. Ele se esforçava para despertar em mim uma fagulha de algo que eu, sinceramente, não tinha. Eu não queria decepcioná-lo, por isso, fazia tudo que me pedia e me esforçava, tanto quanto ele desejasse para aprender a ler no ritmo e entonação que me eram exigidos com tanta exatidão. Nunca nos divertíamos juntos, apenas seguíamos aquele ritual, mas estar tão perto de meu pai, iluminado sob aquela luz mística da chama tremulante, estudando mantras sagrados de um tempo esquecido – era o suficiente para me alimentar de amor até o próximo sábado. Mas eu confesso, constrangido, que tinha inveja do tratamento que Ester recebia de nosso pai, já que para comigo ele sempre se portava como um exigente professor. Às vezes, o velho nos contava histórias de uma era remota, sobre reis, guerras e feras, vitórias de um povo orgulhoso e sobre poder, que parecia estar adormecido em minhas veias. Palavras poderosas! “Eu seria capaz de qualquer coisa, se assim desejasse de todo o coração”. Era isso que o velho Tavares repetia de sábado em sábado, durante toda a minha infância desde que me lembro. Jamais me esquecerei daquele sábado em especial, nosso último dia feliz. Ester estreou finalmente seu vestido azul-celeste, ela estava bela e radiante, como um anjo de Deus. Meu pai sorriu por trás da barba comprida e desgrenhada, seus olhos cintilaram como diamantes, e havia no olhar dele uma lágrima que não caía, esperança teimosa de um dia poder nos levar de volta para aquela terra da qual líamos sobre, naqueles pergaminhos, uma cidade onde não haveria mais pobreza, dor ou fome. Seu Tavares, com os olhos marejados, nos envolveu com seus braços, em um abraço amoroso. — Ano que vem, Jerusalém!
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Ao pôr do sol de sábado, porém, nossa casa voltava a ser como a de qualquer outra família da região, e de portas e janelas abertas fazíamos questão de que todos vissem que nada tínhamos a esconder. À vista de quem passava pela frente da casa, erguia-se no encontro de suas paredes de barro um humilde fogão de lenha feito com pedregulhos mal lavrados. Sobre o fogão de lenha nós defumávamos partes de porco e linguiça, das quais nunca comíamos nem mesmo um filete, não importava quão insistente a fome nos quisesse importunar. Ester se empenhava em vendê-las, com a finalidade de fazer algum dinheiro. Se alguém entrasse em nossa casa, deparar-se-ia com um altar rústico de madeira, diante do qual jamais nos ajoelhamos, lar de santos de barro, aos quais nunca fizemos orações. Eles eram como parentes indesejados. Alguns tocos de madeira cortados, ainda com casca, eram usados como assentos. Meu pai os achou no mato e trouxe para nosso conforto e, quando eu neles sentava, ficava vendo o farfalhar das franjas de palha do portal feito com troncos retorcidos de cajueiro, que emolduravam minha vista para a rua de terra batida. Tínhamos uma grade improvisada com galhos, para secagem de couro e de carne salgada. Uma cruz de palha solitária jazia fixada ao batente da porta, usada como amuleto de proteção. Na manhã seguinte, demos adeus ao sábado, quando saímos de nossa “caverna escura” e adentramos na luz do domingo, rumo à igreja, o que fazíamos muito a contragosto, mas com gélido temor latejante. Nós usávamos as melhores roupas que a pobreza permitia. Caminhamos para a igreja, que ficava no fim da avenida de terra batida, centro do vilarejo pontilhado por casinhas de barro com portas e janelas de madeira rústica, nosso passo de cortejo fúnebre, onde todos os nossos conhecidos nos seguiam com olhares inquisidores, cujo peso do desprezo eu sentia, e o motivo eu acreditava inocentemente ser devido à nossa pobreza. Chegando às portas da igreja, logo avistei o grupinho de meninos, com quem eu sonhava em fazer amizade, os famosos “Ases da Confusão”: Álvaro, Afonso e Alberto. Pela amizade deles, eu havia tolerado muita judiação e até algumas surras que, nos últimos meses, haviam se tornado mais frequentes e dolorosas. Eles tinham prazer e necessidade compulsiva de mostrar o quanto eram fortes e valentes contra aqueles menores do que eles. Álvaro sempre ostentava um sorriso soberbo, principalmente quando suas vítimas eram pequenos animais. Eu era muito bom em resistir a humilhações, graças ao exemplo e orientações de meu pai, e em parte, pela inocência que minha irmã lutava diariamente para preservar em meu coração. Eu acreditava que Deus não era um bom anfitrião para conosco, pois, em sua casa éramos sempre tratados como cães sarnentos. Muito diferente do procedimento que tínhamos para com Ele em nossa casa, o que, a meu ver, parecia muito estranho e não fazia sentido. Todavia, naquele domingo em especial, Deus não teria a oportunidade de se redimir conosco, pois, antes de chegarmos aos enormes portões rústicos da igreja barroca, algo trágico e peculiar aconteceu, talvez o cumprimento dos presságios de meus pesadelos.
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Distraído que sou, perdi-me totalmente em meu relato apressado e acabei esquecendo de me apresentar formalmente. Meu nome é Isaque, filho de seu Tavares e tenho um segredo! Bem, na verdade, minha família tem um segredo! Algo tão místico e sagrado para nós, que devemos manter oculto das outras pessoas a todo custo, ou morreremos. Um segredo que, de acordo com meu pai, era algo maravilhoso, mas que os outros não eram capazes de compreender; por isso, nos abominavam. Sendo assim, guardamos com zelo as sagradas palavras secretas, mais por medo do que por ciúme. Eu era menino e, como tal, não entendia que segredo tão importante era aquele e por que, se tão maravilhoso o que guardávamos era, qual o motivo de não compartilharmos com o povo da vila Mirandela? Eu pensava que as pessoas talvez deixassem de nos tratar com desprezo se dividíssemos o nosso tesouro com eles! Papai dizia que não, aquelas letras sagradas jamais deveriam ser vistas por alguém fora da família e as palavras nunca poderiam ser pronunciadas fora de casa! A vila onde eu morava foi erguida aos pés de uma serra íngreme que, às vezes, dava a impressão de que cairia sobre nós a qualquer momento. As casas foram construídas às pressas por homens nada caprichosos, cujo desejo pelo vil metal, encontrado por eles há muito tempo na região, os seduziu o suficiente para criarem raízes de ganância ali. O povoado tinha tudo para prosperar, contudo, não havia mais ouro, apenas pessoas com medo de ir embora e perder alguma oportunidade de enriquecimento fácil. A maioria das casas era pequena, construída de barro, sem muito esmero, e os telhados eram cobertos com telhas feitas “nas coxas” por pessoas com tamanhos e pesos diferentes, pois não havia qualquer harmonia ou padrão na disposição do telhado, como um sorriso cheio de dentes encavalados. As portas e janelas de madeira tinham grossas molduras rústicas e eram feitas pela disposição de ripas assimétricas. As casas se pontilhavam, uma após a outra, como se eu vivesse em uma espiga de milho gigante, onde cada caroço seria uma casa e cada espaço entre os grãos, uma rua. Mas, diferentemente do capricho com que a natureza fazia suas obras, a vila era cheia de casas igualmente desiguais e tortas ruas de terra batida.
Cativos, nós seguíamos em nossa lenta marcha, com a mesma disposição de um condenado dando seus derradeiros passos até o cárcere. Logo, a avenida principal ficou apinhada de gente, como formigas seguindo para o formigueiro, de onde se erguia a igreja no centro da vila. De cabeça baixa e ainda remoendo o pesadelo que tive na noite passada, pensei em dividir tudo aquilo com meu pai, mesmo que omitisse a parte que incluía uma selvagem nua. Contemplar a nudez de uma mulher era pecado grave, segundo meu pai. Mas eu tinha uma dúvida: fitar uma selvagem, que vivia nua, ainda seria considerado nudez pecaminosa?
Eu sempre notei os olhares faiscantes que os homens do vilarejo lançavam para minha irmã e como se deliciavam demoradamente ao olhar para ela. Se eu sentia vergonha por aqueles homens, meu pai sentiria vergonha de mim; portanto, decidi não dizer nada a ele sobre o repetido pesadelo. Perdido em minhas reflexões, só pude constatar a tragédia quando ela me sorriu com sua boca maligna e cheia de dentes pontiagudos. A primeira coisa que senti foi a garganta fechar, e meus olhos começaram a arder. Em seguida, ouvi gritos e balbucios em uma língua estranha. Foi quando uma seta zuniu rente ao meu ouvido, como um marimbondo nervoso, e logo um enxame de vespas feitas de pau e penas começou a chover sobre nós. O vento trouxe uma fumaça desnorteadora, que se mesclou rapidamente com a poeira do desespero dos transeuntes, que mergulharam em um turbilhão de histeria coletiva ao se verem encurralados pelos selvagens Tupinambás. Fomos atacados por brutos homens nus, que saíram rapidamente da mata e ganharam as ruas com facilidade. Os selvagens estavam fortemente armados com paus e lanças, berravam em um frenesi violento, balbuciando seus gritos de guerra e atacando indiscriminadamente os habitantes da vila. Era como se fôssemos a caça e eles, os caçadores. Aqueles que já estavam dentro da igreja imediatamente fecharam as espessas e pesadas portas do templo, deixando os retardatários desprotegidos, à mercê da sorte e da bondade dos selvagens. A falta de pontualidade na missa, da qual padre Gregório estava sempre reclamando, havia finalmente cobrado um alto preço para aqueles que ficaram do lado de fora. Pintados de sangue e carvão, cobertos de plumagens vermelhas, os selvagens me pareciam como quimeras blasfemas, vindos do mais profundo círculo do inferno. Coroados pela floresta, eles ostentavam coroas feitas de penas amarelas, ossos fincados nas narinas e pedras perfurando os lábios inferiores. Exibiam no corpo e nas armas magnífica plumagem de mil cores. Muitos usavam colares de mariscos no pescoço, sobre o peitoral forte e nu, ou nos tornozelos. Os selvagens exalavam ódio, pareciam munidos de uma fúria implacável, envolvidos em um transe sanguinário ritmado pelo batuque de seus tambores de guerra que os tornavam uma só força de combate. Como um manto de violência, seguiram consumindo tudo que cruzasse seu caminho. As casas que tinham o telhado de palha foram incendiadas por setas flamejantes. O fogo também foi usado em arbustos de pimenta para produzir fumaça atordoante que acabou por comprometer a riqueza de detalhes da minha narrativa, obrigando-me, por motivos óbvios, a me ater apenas ao que aconteceu ao meu redor. O mais distante que meus olhos puderam ver, contemplei aterrorizado a silhueta de um homem, tendo a cabeça esmagada por um tacape de um selvagem. O barulho dos ossos se rompendo ecoou, e seus miolos jorraram, deixando como testemunha o sangue na terra. O que me pareceu ser uma mulher com um bebê no colo correu desesperada, talvez fosse a esposa daquele homem, sendo logo capturada por outro selvagem. Eles arrancaram à força a criança dos seus braços, ao que parece, sem se preocuparem com a integridade física do bebê. Só Deus sabe o que fizeram com o pobrezinho. E logo, a mulher teve as vestes rasgadas e, jogada no chão, foi arrastada pelos cabelos, até se perder de meus olhos aterrorizados. Longe dali, vi um menino que, provavelmente, ainda não completara dois anos, correndo desnorteado em prantos, gritando desesperado por sua mãe. Ele tinha cabelos cor de palha como os meus e grandes olhos verdes. Nunca mais vou esquecer de seu rosto e de como suas mãos tremiam desesperadas, clamando, à sua maneira, por misericórdia. Foi quando uma massa de selvagens passou por nós e me fez perder o garotinho de vista; no entanto, tenho a impressão de que ele foi pisoteado até a morte durante o confronto. Meu pai nos abraçou e, em seguida, nos colocou para trás; ele manteve os olhos atentos ao aparecimento de qualquer um que brotasse da fumaça e não estivesse usando calças. Ele tinha um pedregulho irregular nas mãos e o apertou com tanta força que sua pele se esfolou, minando sangue. Pude ver os dentes cerrados por detrás do bigode desgrenhado de meu pai, exibindo um olhar feroz que eu jamais vira antes. Valente lobo do mar que ele era, eu sabia que faria qualquer coisa para defender seus filhos e, mesmo naquele caos, não senti medo, pois ele estava comigo.
Um selvagem surgiu da fumaça, armado com um bastão, lançou um ataque fulminante contra meu velho pai que, apesar da idade, mostrou-se ágil como uma raposa e se livrou do golpe inimigo, retirando a cabeça do trajeto traçado pelo guerreiro tupinambá. Imediatamente, devolveu-lhe uma pancada com a pedra, que acertou em cheio a mandíbula do selvagem desprevenido, que, aparentemente, havia subestimado o poder de meu pai, por conta de sua branca barba comprida. O selvagem foi ao chão, contudo levantou-se, como se nada tivesse acontecido. Na verdade, o golpe teria sido apenas um revés, que só serviu para inflamar ainda mais seu coração guerreiro contra meu pai que, por sua vez, se safou de tomar um golpe fatal na cabeça, mas foi atingido no ombro, o que levaria alguns dias para voltar a funcionar e mais alguns para deixar de doer. Impossibilitado de lutar, meu pai recuou e, apesar de fazer de tudo para que seu inimigo não percebesse que estava ferido, o selvagem soube de seu blefe, pois era muito mais experiente na arte do combate do que meu pai. A verdade é que, por mais que o velho tenha usado muita energia para ignorar a dor, o inimigo sabia que aquele lobo não mais morderia. Tenho vergonha de admitir, mas ver meu pai de joelhos, diante do selvagem, que lhe preparava um impiedoso golpe fatal, foi demais para mim. Eu era fraco e sabia disso. Senti a urina quente descer pelas pernas, minhas mãos tremeram, e eu fiquei imobilizado pelo medo, como um rato diante de uma serpente. Minha irmã, mais valente que eu, colocou-se na frente de meu pai, que urrou de desespero, e com o braço que ainda podia mexer, tentou tirar Ester do caminho. Eu fiquei imóvel olhando o acontecido, me senti menos do que um verme. Eu queria fazer algo, mas não sabia o que. Eu temia que, somente diante do cadáver das duas únicas pessoas que eu amava no mundo, me ocorreria como lutar, pois eu sempre fui um menino lento para reagir e tinha medo que isso fosse me custar tudo o que amava. No entanto, o selvagem hesitou no seu golpe final ao ver diante dele a beleza de um anjo de Deus. Tão bela quanto era, Ester conseguia amolecer até o coração mais brutal e indomável filho da floresta e remover dele o desejo assassino. Minha irmã tinha tal virtude mística: comover até mesmo a fera mais violenta, amolecer o coração mais duro e amargo. Era como uma entidade sagrada, que curvava para si a vontade dos homens, não importando quão dura fosse a cerviz, todo joelho, cedo ou tarde, se dobraria diante da beleza avassaladora de Ester. O valente guerreiro selvagem foi pego pelo canto da sereia e se afogou em seu olhar. Eu soube naquele instante que o indígena faria qualquer coisa por ela. Ester foi amada pelo índio alucinado e colocada em seu coração, como uma Deusa da fertilidade e da beleza de tempos imemoriais, tão rápido e tão intensamente, que se esqueceu até mesmo de quem ele era e, em um piscar de olhos, o rosto do selvagem se tornou uma máscara febril, caricata de si mesmo. No coração do guerreiro, nasceu pujante idolatria instintiva e avassaladora, dando ao selvagem um novo motivo para viver, que sobrepujou qualquer outro anterior. Ele agarrou minha irmã pelo braço, delicado como o pescoço de um cisne, e quis se apossar dela para sempre. Ela gritou, pois, seu coração que deixara a infância, já havia ganhado a malícia das mulheres, aquele poder dado por Deus ao vaso mais fraco, para que possam se proteger, mesmo sem a força física dada aos homens. Ester lutou para se libertar, meu pai logo entendeu o que se passava e soube que perderia sua filha para sempre, caso não tomasse uma atitude drástica. O selvagem queria Ester para si, mais do que a própria vida e se agarrava a ela, com toda a força que tinha, mas, com zelo proporcional, se empenhava para não a ferir no processo. Desesperado e possuído por uma paixão fulminante, ele enfrentaria qualquer um que se colocasse em seu caminho, e foi o que fez, quando outros três de seus parentes selvagens saíram da névoa de poeira, fumaça e pimenta. Instantaneamente, eles também despencaram no abismo sedutor dos olhos de Ester e a queriam da maneira mais egoísta, de modo que jamais aceitariam dividi-la, nem mesmo por um momento. O ódio entre os irmãos tupinambás se elevou aos céus, pois, o fato de que sua amada pudesse ser olhada por outro homem fazia com que o desejo assassino brotasse no coração deles. Naquele dia, foi a primeira vez que eu vi um índio fora de meus pesadelos e, por este motivo, comecei especificamente meu relato deste ponto e não de outro. Ver aqueles guerreiros canibais nascidos na selva, criados na caça e sobreviventes de muitas guerras tribais, me fez compreender que o mundo em que eu nasci era cruel e que eu era fraco demais para sobreviver nele. Se quisesse continuar vivo, teria que ser forte, muito mais do que um guerreiro tupinambá. Contudo, outra coisa tão dolorosa quanto a quebra da minha infância me aconteceu naquele dia. Algo que marcou a minha alma a ferro em brasa, que eu jamais esqueceria. Mijado, suado e tremendo de medo, com a cara retorcida pelo pavor e choro, enquanto me engasgava com minha própria covardia, distraído que estava com o confronto, notei tarde demais que meu pai me olhava. E o olhar de decepção dele arrancou uma parte de mim. “Lute, Isaque”. Meu pai havia gritado, mas eu não ouvi, surdo de medo. Mas o “Isaque” que ele disse, com o olhar de desapontamento, foi a pior coisa que eu havia ouvido na vida até então. “Isaque”. Ouvi meu pai gritar novamente, engasgado, depois do estalar de ossos, quando ele colocou o próprio ombro novamente no lugar. Meu pai se levantou, graças à pouca força que lhe restava, e após ter desistido de mim, se lançou contra os inimigos, como fazem as ondas do mar sobre os navios, durante uma tempestade. Todavia, ele era velho e já ferido por apenas um selvagem, nada conseguiu fazer contra quatro deles. O velho Tavares havia desistido do filho, mas não estava pronto para abrir mão da “menina dos seus olhos”. Ele morreria por ela e me lançou um último olhar, sem palavras, pois o silêncio bastou para me dizer “Daqui em diante, conto com você!” Eu sabia, mesmo com a pouca idade, que meu pai faria o sacrifício máximo que um pai poderia por seus filhos: dar a própria vida!