No lado errado do paraíso

“Às margens dos rios da Babilônia nós nos sentávamos e lá chorávamos, nos lembrando de Sião. E nossos captores nos pediam canções, mas como poderíamos cantar louvores a Deus nessa terra estranha?”

Caminhando à margem de um belo rio caudaloso, as refugiadas entoavam cânticos para manter o ânimo enquanto adentravam a paradisíaca terra recém-descoberta, onde lhes fora prometido um recomeço. Os pés cansados se arrastavam por uma trilha verdejante de mata indômita, que exibia infinitos tons de verde. Nas mãos calejadas, as refugiadas sustentavam embrulhos onde carregavam, de maneira improvisada, o pouco que lhes era tudo: os cacos de uma vida antiga.

O sol que dava cor à floresta, ao tocar as águas, criava fios cintilantes de prata que serpenteavam correnteza abaixo, transformando-se em espuma ao beijar as pedras. O canto das mulheres tentava encobrir o choro das crianças pequenas, que temerosas, agarravam-lhes as saias. Ouvia-se também a melodia dos incontáveis pássaros, os gritos de macacos e demais feras estranhas, animais exóticos que nenhuma delas havia visto antes, criaturas desconhecidas de uma terra tropical, novidade entre os cartógrafos, que a cada dia descobriam que a Ilha de Vera Cruz era bem maior do que se pensava inicialmente.

As lágrimas insistentes já haviam criado profundas marcas nas faces desoladas das refugiadas, durante todo o penoso trajeto feito de caravela do velho mundo até ali. Famílias que uma vez foram abastadas na Espanha e em Portugal agora se viam enfrentando a miséria e o abandono em uma selvagem terra paradisíaca. Por um instante, até conseguiram se esquecer da angústia ao contemplar a beleza das flores de mil cores e aromas, pássaros de plumagens reluzentes e cantos diversificados. Toda a realeza verdejante daquele paraíso esquecido por Deus era inebriante, porém sufocante para o juízo, pois calejados estavam os ouvidos delas por ouvir relatos sobre os perigos que tal beleza escondia.

Distribuídos aleatoriamente pela comitiva de exilados, havia mercenários armados com arcabuzes, pistolas rústicas e espadas coloniais, que cochilavam nas bainhas atadas na cintura. Eles usavam roupas sujas, puídas e tinham cabelos oleosos caídos aos ombros, que se misturando às barbas desgrenhadas lhes davam um aspecto de andarilhos errantes. Seus rostos carregavam testemunho de uma vida de violência, e em seus olhos pairava temor, uma tensão frequente como se esperassem que do mato, saltaria uma onça a qualquer instante.

Incomodados com o coro das mulheres, os mercenários ordenaram que elas engolissem o canto e guardassem energia a fim de que caminhassem mais depressa. Mas pouco andaram em silêncio, quando da selva tropical veio um uivo agudo e cadenciado, que não se parecia com fera do mato, mas feito por boca de homem selvagem. O medo gelou a alma, ardia na pele e descompassou o coração. Imediatamente, todos os mercenários se colocaram em posição de tiro. A tensa respiração pesou, e a incerteza da origem do uivo fez com que uma nuvem de mau agouro pairasse sobre eles, tornando o medo em algo viscoso e quase tangível. E como começam as tempestades repentinas de verão, choveram flechas que passaram zumbindo nos ouvidos. As mulheres desesperadas se jogaram sobre suas crianças, na tentativa de defendê-las usando como escudo o próprio corpo. E ao precipitado disparo do primeiro mosquete ansioso, uma nuvem escura de fumaça trouxe o pavor profano da pólvora negra, e muitos outros estampidos o seguiram como uma revoada de pássaros assustados. Em seguida, do mato verde intocado brotou um bando de homens nus, de pele vermelha queimada de sol, cuja única vestimenta era pintura de rubro sangue e negro carvão. Eles ostentavam no alto das cabeças de lisos cabelos negros, uma coroa reluzente de penas amarelas, como se fossem os reis daquela terra indomável. Armados com paus e facas primitivas feitas de pedras, os nativos nus e alucinados atacaram a comitiva de refugiados ostentando ódio no olhar e violência bestial. Um soldado caiu morto com a cabeça aberta, outro tombou em seguida com uma flecha fincada no pescoço, e morreu se afogando em seu próprio sangue. Os selvagens não mostravam qualquer piedade nem mesmo frente aos filhos dos invasores, pois assim haviam sido educados pela mãe natureza, que os acolheu há milhares de anos antes do primeiro branco pisar nas areias cintilantes daquelas praias. Os mercenários, por sua vez, sabiam que frente aos tupinambás não haveria possibilidade de rendição; seriam mortos ali com violência ou capturados para serem devorados em malignos rituais de canibalismo tribal.

Ao se verem cercados diante da morte certa, os soldados da fortuna tinham como única alternativa lutar até a última centelha de esperança contra a violência daqueles demônios nus, pintados e emplumados como aves quiméricas vindas do inferno. Mas quando o fim parecia certo, surgiu um lampejo de esperança. O estampido dos arcabuzes ecoou na mata mais uma vez, e muitos selvagens caíram atingidos nos flancos. Pois, da trilha acima veio o reforço oportuno; foram vistos mais homens montados em corcéis e armados até os dentes, com suas armas de fogo, do cano ainda soltando fumaça. A sorte da batalha parecia ter mudado repentinamente em favor dos portugueses, e todos os mercenários compartilhavam do ímpeto renovado, reiterando novos ataques contra os selvagens tupinambás. Todavia, a felicidade dos homens do velho mundo teve fim abrupto, como um filho prematuro que morre logo após o parto. Já que da floresta tropical surgiu uma sombra colossal de forma humana, e todos se sentiram diminuídos imediatamente quando as trevas do medo pareceram cobrir toda a clareira. Pois naquelas paradisíacas terras terríveis, a fama de um selvagem guerreiro colossal esculpido em pau-brasil já o precedia largamente, conferindo ao gigantesco Cunhambebe um ar de lendário, mesmo que ainda jovem. Rapidamente, uma onda de pânico se abateu sobre os mercenários lusitanos, já que era sabido, quase a status de senso comum, que aquele selvagem havia devorado, impiedosamente, mais de quarenta portugueses. O mais novo líder supremo dos Tupinambás, o gigantesco Cunhambebe, montanha de músculos forjados no calor da batalha, tingido de vermelho do sangue dos inimigos, da mata surgiu urrando em frenesi bestial. Com as mãos nuas, ele sustentava sozinho um grande tronco de árvore tão grosso e maciço como um mastro de nau, façanha inacreditável para um ser humano, que acabou por assustar os cavalos e derrubar seus apavorados cavaleiros. O chumbo das armas de fogo não foi capaz de parar Cunhambebe, nem mesmo diminuir seu ímpeto. Fora de si, o titã rei dos Tupinambás cerrou os dentes quando seu sangue ferveu de ódio, e com os movimentos poderosos de seus braços, usando o tronco de árvore, deitou para sempre muitos mercenários.

Aproveitando-se da confusão, as mulheres correram desesperadas tentando levar seus filhos consigo. Os soldados que ainda tinham condições de lutar davam suas vidas para proteger a fuga dos degredados. Apagava-se ali a derradeira esperança de um povo oprimido, que ansiava por um recomeço nas terras selvagens de um violento país recém-parido. Cunhambebe festejou, orgulhoso, a debandada dos seus inimigos e rejubilou-se ao lado de seus filhos que haviam tido sucesso em sua primeira missão de ataque contra os “perós” invasores. Aquele embate tinha sido o batismo de transição para a vida adulta de seus príncipes tupis guerreiros. Contudo, algo trouxe Cunhambebe de volta à realidade; um lampejo agourento ofuscou o brilho de seus negros olhos, como as brumas que se escorrem dos verdes montes nas gélidas manhãs de inverno. E ele viu que próximo aos seus pés, uma mulher de bruços agonizava, e sangue descia pelas pernas dela. Dois filhos orgulhosos de Cunhambebe sugeriram ao pai que a levassem com vida, a fim de ser devorada. O outro, caçula e mais piedoso, pediu que fosse colocado um fim na agonia dela ali mesmo. Decidindo-se pela bondade de seu filho mais novo, Cunhambebe escolheu o mais proeminente e pomposo pedregulho que encontrou e facilmente o elevou sobre a cabeça. Ele tinha modos de quem quer se exibir aos filhos.

A sombra da morte encobriu os últimos suspiros de vida da mulher que jazia no gramado coberto com folhas secas da trilha aberta na mata nativa. Porém, a vítima finalmente emitiu seu derradeiro suspiro antes do golpe de misericórdia, tornando assim desnecessária a sentença do carrasco selvagem, que frustrado, contentou-se em deixar de lado o imenso pedregulho que sustentou até aquele momento. Cunhambebe e seus filhos deram as costas à mulher morta e rumaram a pés descalços de volta para o mato, ritmados ao som do chacoalhar dos colares de concha atados em seus calcanhares. Porém, um gemido abafado praticamente inaudível chamou novamente a atenção do colosso tupinambá, que mesmo em meio aos desordenados festejos de seus filhos e à sinfonia da floresta, captou aquele ínfimo clamor. Para saciar sua curiosidade, de volta à mulher morta, Cunhambebe usou um dos pés para pôr o cadáver de frente para cima. Ele viu que a jovem tinha feições debilitadas e parecia ter passado grandes provações até aquele dia, contudo teria sido um ferimento na cabeça que colocou um ponto final à sua jornada – provavelmente causado por ele próprio. Cunhambebe notou que algo ainda se mexia no seio da mulher, oculto pelas vestes. E o que ele viu trouxe horror à sua existência. A curiosidade do Tupinambá descobriu um pequeno bebê febril, lutando à sua maneira pela vida, sugando leite do peito da mãe morta. Um recém-nascido ainda coberto de sangue do parto, exibindo parte do cordão umbilical, que há pouco tinha sido cortado de forma brusca e improvisada. Provavelmente, a mulher havia dado à luz durante a caminhada naquela manhã. O todo-poderoso rei dos Tupinambás foi atingido por um golpe na alma que o fez vacilar, façanha que nem mesmo o chumbo quente dos arcabuzeiros foi capaz de fazer. A selvagem sabedoria daquele Salomão tupi gritava ensurdecendo-lhe a razão: “Assim como tu, Cunhambebe, este menino indefeso foi parido no mato, nascido na selva – e é inocente e indefeso, como tu um dia foste.”

A fúria de Cunhambebe se apagou e, ainda que relutasse hesitar diante de seus filhos, pois a eles havia de dar o exemplo, o rei dos tupinambás se demorou a admirar aquela cria de seus inimigos, que mesmo sendo um branco, lhe parecia tão familiar. Porém, a lei era clara, mesmo que aquele bebê não tivesse qualquer defeito aparente de nascimento, era filhote de Peró e seu destino deveria ser a morte.

Contudo, ao examinar o recém-nascido mais de perto, uma inquietude na alma de Cunhambebe fez seu coração bater mais forte, e o batimento se tornou ensurdecedor em seus próprios ouvidos, como tambores rituais que trazem agourenta profecia de guerra. O suor desceu frio por sua rubra fronte pintada, e seus lábios se tornaram secos como areia da praia, pois o aroma do sangue do bebê cheirou tão forte em suas narinas que atormentou seu coração. E Cunhambebe soube naquele instante: “Aquele menino tem algo dentro dele que mudaria o destino de tudo que ele conhecia”.